RESUMO: O objetivo do presente artigo é, em conjunto com o estudo e compreensão de alguns dos recentes julgados dos Tribunais Superiores, fazer observações sob o aspecto material e legal acerca do instituto da desapropriação e de atos-fatos a ele relacionados, com base na jurisprudência e doutrina atual que debate o referido tema. Busca-se, pois, a análise das consequências das decisões que tratam da intervenção do Estado na propriedade privada, a partir de considerações também conceituais sobre institutos relacionados.
Palavras-chave: Desapropriação ordinária. Desapropriação indireta. Retrocessão. Tredestinação. Supremacia do Interesse Público.
ABSTRACT: This study aims to analyze, by the understanding of some of the recent Superior Courts decided cases, observations of legal aspects about the institute of expropriation and acts-facts related to it, based on the jurisprudence and current doctrine that debates the referred theme. Therefore, the aim is to analyze the consequences of decisions that deal with State intervention in private property, based on conceptual considerations about related institutes.
KEYWORDS: Ordinady expropriation. Indirect expropriation. Retrocession. Tredestination. Supremacy of the Public Interest.
SUMÁRIO: Introdução. Considerações iniciais sobre o instituto da desapropriação. Análise da Desapropriação Indireta. Os institutos da Tredestinação e da Retrocessão. Impacto orçamentário financeiro da medida expropriatória.
INTRODUÇÃO
O cenário contemporâneo demonstra a diária evolução principiológica do Direito Administrativo, e, nessa perspectiva, o tema da intervenção do Estado na propriedade, o qual tem relação direta com a supremacia do interesse público, também merece sentir os efeitos desses avanços.
Partindo-se da ideia de que o princípio da supremacia do interesse público sob o privado, considerado pela doutrina clássica administrativista como um princípio implícito, exerce função basilar no regime jurídico administrativo, analisando-o em conjunto com o princípio da indisponibilidade do interesse público, verifica-se a formação, de um lado, de uma garantia e, de outro, de uma barreira restritiva da atuação administrativa.
Essa prerrogativa em busca da realização dos interesses da coletividade permite à Administração Pública impor aos administrados determinadas condutas em razão da tão conhecida prevalência do interesse público sobre o privado. Ressalta-se que, nesse contexto, a referência se atém ao chamado interesse público primário, isto é, aqueles que dizem respeito às finalidades do próprio Estado, principalmente na efetivação de direitos fundamentais.
Como será mais detidamente analisado no presente artigo, a doutrina contemporânea vem fazendo críticas a essa concepção, a partir do entendimento de que não existiria tal prevalência de interesses, uma vez que, além de não haver previsão expressa na Constituição Federal da República, não há, necessariamente, uma exclusão, ou ainda, uma contraposição entre o público e o privado, devendo-se dar preferência a ponderação de interesses eventualmente em jogo.
Nesse contexto, surge o tema da intervenção do Estado na propriedade. A doutrina, em geral, considera que o gênero abarca duas espécies. A intervenção branda ou restritiva, aquela em que o Estado estabelece restrições condicionantes ao uso da propriedade, mas o particular permanece proprietário, quais sejam: a servidão administrativa, a requisição, a limitação administrativa, a ocupação temporária e o tombamento.
Já uma segunda espécie, chamada intervenção drástica ou supressiva, que comporta a desapropriação e suas modalidades, em que o Estado retira o bem da propriedade do indivíduo e, compulsoriamente, transfere-o para o seu próprio patrimônio, seja para adequá-lo à função social, seja para adaptá-lo à satisfação de um interesse público.
O presente trabalho pretende analisar os principais aspectos dessa forma de intervenção estatal na vida privada, abordando-se, ainda, o estudo da retrocessão, da tredestinação e da desapropriação indireta, por serem institutos que alteram sobremaneira a vida dos administrados, mormente sob o aspecto da vida privada e do direito à moradia, sempre com fundamento em um “bem maior”, qual seja, o interesse público.
Por fim, a partir do estudo de recentes decisões do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, serão feitos comentários acerca da necessidade ou não de demonstração de impacto financeiro de forma anterior ao decreto expropriatório.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE O INSTITUTO DA DESAPROPRIAÇÃO
Segundo Carvalho Filho[1], desapropriação é “o procedimento de direito público pelo qual o Poder Público transfere para si a propriedade de terceiro, por razões de utilidade pública ou de interesse social, normalmente mediante o pagamento de indenização”.
Já na perspectiva de Celso Antônio Bandeira de Mello [2], ao conceituar o instituto, complementa-se ainda a partir da ideia de “sacrifício de direito imposto ao desapropriado”.
Trata-se, pois, de forma de intervenção drástica e supressiva do Estado na propriedade, pois o Estado retira o bem da propriedade do indivíduo, transferindo-o para o patrimônio do próprio Estado, visando a satisfação de uma necessidade pública.
É tida como forma de aquisição originária do bem pelo Estado, já que esse o adquire independentemente do consentimento do particular, compulsoriamente, ingressando no patrimônio do Estado de maneira livre e desembaraçada, isto é, sem gravames ou ônus reais. Como consequência, eventuais credores, por exemplo, deverão se subrrogar no preço que o Estado pagar como forma de indenização.
Por sua natureza de procedimento administrativo, e, quase sempre, processo judicial, bem como diante de sua imperatividade, imperativa a verificação dos pressupostos que legitimam essa excepcional atuação estatal, diante da supressão de direitos fundamentais dos administrados.
Dessa forma, deve estar presente a utilidade pública, fundamentada na conveniência, de onde se extrai também a necessidade pública, de caráter emergencial, e o interesse social, que tem como função precípua a neutralização de desigualdades sociais. Por serem conceitos jurídicos indeterminados, a definição dessas hipóteses cabe às normas infraconstitucionais.
No que concerne à indenização, a regra é que seja prévia, justa e em dinheiro, conforme previsão expressa no art. 5o, inc. XXIV, da Constituição Federal[3], o qual foi regulamentado pelo Decreto Lei no. 3.365/41 (desapropriação por utilidade pública e necessidade pública), bem como pela Lei no. 4.132/62 (desapropriação por interesse social).
Em havendo a necessidade de instauração de ação judicial, isto é, impossibilitado o acordo na fase administrativa, e instaurado o processo expropriatório, o Estado será condenado a realizar o pagamento do preço, por meio de precatório, procedimento constitucional para pagamentos de débitos oriundos de sentença condenatória contra a Fazenda Pública, feito em dinheiro, e respeitando-se a ordem cronológica.
Entretanto, poderá também o pagamento se dar em títulos especiais da dívida pública resgatáveis em parcelas anuais e sucessivas em até 10 anos. Essa modalidade ocorre nos casos de desapropriação efetuável em nome da política pública urbana, de competência da municipalidade, em consonância com o art. 184, e regulamentada pela Lei 10.257/01, Estatuto da Cidade.
Essa modalidade expropriatória é também chamada Desapropriação Sancionatória Urbanística, sendo certo que sua aplicabilidade é de cunho apenas subsidiário.
Em outras palavras, só haverá esse tipo de desapropriação quando já instaurado o regime de parcelamento do solo ou edificação compulsória, bem como quando já tiver sido iniciada a cobrança de imposto territorial ou predial progressivo, como forma de alerta ao proprietário para que dê adequada função ao imóvel. Tão somente na hipótese de não lograr êxito a partir de tais tais medidas é que estará a Administração autorizada a dar início ao procedimento expropriatório na modalidade sancionatória.
Além disso, há ainda, a modalidade de desapropriação para fins de reforma agrária, a qual é de competência privativa da União, a qual tem como escopo alcançar latifúndios improdutivos e propriedades que, ainda que não tenha características territoriais que a definam como tal, sejam de propriedade de pessoa que coleciona propriedades improdutivas. Conforme dispõe Clóvis Beznos[4], essa modalidade de intervenção também se aproxima de um caráter punitivo.
Cabe mencionar, por fim, a modalidade confiscatória prevista no art. 243 da Carta Magna[5], sendo certo que a natureza jurídica de confisco está diretamente relacionada à inexistência de indenização, seja prévia ou póstuma. Essa é a principal característica dessa espécie expropriatória e se dá justamente pelo motivo que origina a perda da propriedade. São casos em que no imóvel são localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas, ou, então, a exploração de trabalho escravo.
Quanto ao tema, a Suprema Corte vem exarando importantes decisões. Em dezembro de 2016, o Supremo Tribunal Federal[6] passou a entender que a expropriação prevista no art. 243 poderá ser afastada desde que o proprietário, sob o qual recai o ônus da prova, consiga se desincumbir do aludido ônus, provando-se, pois, que não incorreu em culpa, mesmo que in vigilando, ou seja, pela falta de atenção ou fiscalização em procedimento realizado por outrem, ou culpa in eligendo, isto é, na má escolha daquele a quem se confia a prática de um ato.
Entendeu ainda a Suprema Corte que, em havendo o cultivo de plantas psicotrópicas ilegais, expropriar-se-á toda a propriedade envolvida na atividade ilícita, e não somente a área específica do cultivo ou exploração.
Fase importante do procedimento administrativo é a imissão provisória na posse, constante do art. 15 do Decreto Lei no. 3.365/41[7]. A importância dessa possibilidade que foi oportunizada pela legislação ao Poder Público está relacionada ao fato de que, em regra, a posse pelo poder público expropriante só ocorre ao final da ação, quando, fixado o preço da compensação, há o pagamento do precatório.
Porém, o legislador possibilitou o adiantamento do momento em que a posse do imóvel entra em poder da Administração Pública, permitindo, pois, que sejam iniciadas as obras e adequações necessárias ao fim a que se passa a destinar o bem.
Acerca desse relevante momento da ação de desapropriação, também se debruçaram os Tribunais Superiores. A Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no REsp no. 1930735-TO, de Relatoria da Ministra Regina Helena Costa, julgado em 28/02/2023, entendeu que “a ausência do depósito previsto no art. 15 do Decreto-Lei n. 3.365/1941 para o deferimento de pedido de imissão provisória na posse veiculado em ação de desapropriação por utilidade pública não implica a extinção do processo sem resolução do mérito, mas, tão somente, o indeferimento da tutela provisória.”
Trata-se, como é de se notar, de decisão que vai ao encontro do novo espirito do Direito Processual Civil moderno, calcado no princípio da primazia do julgamento do mérito, afastando-se hipóteses de extinções processuais desnecessárias, mormente quando se está diante de ação proposta por entes federativos e, ao menos em tese, em busca da tutela do interesse público.
2.ANÁLISE DA DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA
Apesar da constante confusão, em que a nomenclatura “desapropriação indireta” dá ensejo à equivocada conclusão de que refere-se a mais uma modalidade expropriatória, cumpre diferençar o instituto das demais espécies supranalisadas por ser mero ato administrativo - ou fato, como defende a doutrina do professor Carvalho Filho.
Em regra, o Estado deve respeitar o devido processo legal. Em breve síntese, esse é caracterizado por um procedimento, o qual é iniciado por um decreto expropriatório, baixado pelo Chefe do Executivo. Individualiza-se, então, o bem que será desapropriado com base no interesse público, e, após, oferece-se um valor ao proprietário do bem. Havendo acordo, há uma desapropriação amigável, em âmbito meramente administrativo. Caso contrário, em não havendo a concordância do particular (não quanto ao ato expropriatório em si, pois é indiscutível o mérito da utilidade pública) quanto ao valor indenizatório, o Estado propõe ação judicial de desapropriação, com perícia, sentença, trânsito em julgado.
A desapropriação indireta, por sua vez, é, muitas vezes, parte de um ato que pode ser tido como abusivo, e parte da própria Administração Pública, a qual nega observância às formalidades do procedimento, havendo doutrina que entenda caracterizar verdadeiro esbulho não só com anuência estatal, mas feito pelo próprio ente. Isto é, aquele que deveria zelar pelo primor procedimental e o respeito às regras, por vezes, burla a regra por ele mesmo criada e anui com tal tipo de comportamento.
É esse o caso da desapropriação indireta. É a própria Administração, com fundamento no art. 35 do Decreto Lei 3.665/1941[8], que, pela teoria do fato consumado, atropela qualquer nulidade advinda do desrespeito ao procedimento. Entretanto, diante da impossibilidade de reversão, resta ao particular postular indenização em ação própria.
A relevância desse ato de expropriação indireta é sua relação com o objeto do instituto em si. Quando se questiona o que pode ser desapropriado pelo Poder Público, conclui-se que todo e qualquer bem e direito que sejam valorizados economicamente podem ser desapropriados pela Administração, desde que respeitada a razoabilidade e a proporcionalidade.
Em um polo extremo, não se pode permitir, no entanto, que o Estado substitua seus instrumentos jurídicos clássicos de aquisição de bens e serviços, tais como o contrato de compra e venda, para atuar a partir de desapropriações.
Em outros termos, se o Estado estiver em condições de adquirir determinado bem, serviço ou direito no mercado, após prévia licitação, como determina a Carta Magna, por vias ordinárias de contratação, não deve fazer uso da intervenção drástica.
Só se pensa em desapropriação quando o Estado não detiver condições de contratar ou adquirir determinado bem no mercado. Lembra-se que tal modalidade de intervenção estatal já é tida como drástica, devendo ser evitada, sempre que possível.
Não bastasse esse “autoritarismo”, a ação judicial que resta ao particular para tentar reaver a quantia perdida em face do Estado possui limitações argumentativas. Isso porque o particular, quando apresenta sua contestação, não poderá alegar toda e qualquer matéria de defesa, conforme artigos 9o e 20[9] do Decreto-Lei no.3.365/41, restringindo-se a discutir vícios processuais e preço.
Identifica-se na doutrina, diante da violação à direitos fundamentais, vozes no sentido da não recepção pela Constituição de 1988 dos referidos dispositivos, por violarem o princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório, entendendo que os art. 9o e 20 não teriam sido recepcionados pela Constituição - por todos, a doutrina do ilustre Professor Marçal Justenfilho.
Apesar disso, o STF, em consonância com a doutrina majoritária, entende que essas restrições são constitucionais e o fato de o réu não poder alegar tudo o que quer na contestação, não impede que o faça em ação autônoma. Aqui, o legislador somente quis adotar um rito mais célere, em prol do interesse público, como espécie de contraditório diferido, valendo a literalidade dos dispositivos.
Por todo o exposto, causa, no mínimo, certa estranheza o fato de o instituto da desapropriação indireta, a qual não respeita o rito legal, ser, ainda no pós-1988, legítimo. Como visto, a própria desapropriação, quando respeitadas as fases de notificação do particular na fase declaratória, com posterior fase executória e, eventual ação judicial, já é medida excepcionalíssima e com hipóteses taxativas em lei. O desrespeito procedimental a um instituto que, mesmo quando previsto em lei, já deveria ser excepcional, por tangenciar violação a direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana e o direito à moradia, não deveria ser aceito.
3. OS INSTITUTOS DA TREDESTINAÇÃO E DA RETROCESSÃO
Segundo José dos Santos Carvalho Filho, tredestinação é “destinação desconforme com o plano inicialmente previsto”. Nome para desvio de finalidade na desapropriação. Tal desconformidade pode ser lícita ou ilícita.
Será ilícita quando a Administração Pública transferir à terceiro o bem desapropriado ou praticar desvio de finalidade, desistindo de seus fins administrativos iniciais, e atendendo interesse que não é sequer público. Já a tredestinação lícita, admitida pela doutrina, jurisprudência e em conformidade com o art. 519 do Código Civil de 2002[10], é aquela em que o Poder Público desvia-se tão somente do interesse público inicial, mas acaba por atender, com o mesmo bem objeto da desapropriação, outro interesse público.
Cabe comentar que a demora na utilização do bem sempre foi objeto de controvérsia doutrinária, com extrema relevância prática. Isso porque, enquanto alguns autores entendiam pela delimitação de um prazo máximo para que fosse considerada a desistência do Poder Público, outros entendem que a mera inação do ente expropriante não gera, por si só, uma presunção de desistência.
Tudo isso influencia diretamente em outro instituto: a retrocessão. Trata-se de direito real (para alguns, ainda, direito pessoal[11]) do ex-proprietário de reaver o bem expropriado, o qual foi tredestinado ilicitamente.
Atualmente, resta consolidado o direito do proprietário de reaver e não só de pleitear perdas e danos, como anteriormente entendia-se. Dessa forma, as soluções para os casos de desvio de finalidade do bem devem respeitar o direito de preferência, alternativamente e à escolha do ex-proprietário, podendo esse optar pelo bem em si, ou pelas perdas e danos.
Quanto à desistência da desapropriação, dessa vez não pela não utilização do bem, mas de forma expressa, o STJ no REsp 1.368.773-MS, entendeu que é ônus do expropriado provar a existência de fato impeditivo do direito de desistência da desapropriação.
Senão vejamos:
“A questão consiste em determinar a quem incube o ônus da prova da impossibilidade de restauração do imóvel ao estado anterior a fim de obstar o exercício do direito de desistência da desapropriação.
Sobre o tema, a jurisprudência do STJ consolidou-se no sentido de que é possível a desistência da desapropriação, a qualquer tempo, mesmo após o trânsito em julgado, desde que ainda não tenha havido o pagamento integral do preço e o imóvel possa ser devolvido sem alteração substancial que impeça que seja utilizado como antes.
O raciocínio é o de que, se a desapropriação se faz por utilidade pública ou interesse social, uma vez que o imóvel já não se mostre indispensável para o atingimento dessas finalidades, deve ser, em regra, possível a desistência da desapropriação, com a ressalva do direito do atingido à ação de perdas e danos.
A partir do julgamento do REsp 38.966/SP, surgiu uma hipótese de impossibilidade de desistência da desapropriação. Se for demonstrado que não há condição de o bem ser devolvido no estado em que recebido ou com danos de pouca monta, não se admitirá a desistência. Nesse ponto, por ser a desistência a regra, contra ela pode ser alegado fato impeditivo, cujo ônus é do expropriado a prova de sua existência.
Trata-se de aplicação da tradicional regra que vinha consagrada no art. 333, II, do CPC/1973. Ela, aliás, vem repetida no art. 373 do CPC/2015. Ademais, a Constituição, no seu art. 5º, XXIV, dispõe que "a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social". Obrigar o poder público a ficar com um bem de que não precisa certamente não atende nenhuma dessas finalidades, mas apenas o interesse particular do expropriado.
Da mesma forma, inverter o ônus da prova em detrimento do ente público viola a cláusula do devido processo legal, estabelecida no art. 5º, LIV, da Constituição”.
Assim, constata-se que o Supremo Tribunal Federal fixou como marco temporal para impossibilidade, pelo ente federativo de desistir da desapropriação não o encerramento do processo judicial, com o trânsito em julgado, mas o pagamento do preço.
4. IMPACTO ORÇAMENTÁRIO FINANCEIRO DA MEDIDA EXPROPRIATÓRIA
Conforme supramencionado, é direito do administrado, expropriado de seu imóvel de forma compulsória pelo Poder Público, o direito à indenização prévia e justa, de maneira a compensar os prejuízos pela perda da propriedade suportados em benefício da coletividade.
Ocorre que, nos últimos anos, verificou-se uma prática recorrente por parte dos entes federativos, os quais, sem qualquer planejamento orçamentário e financeiro, passaram a declarar a utilidade pública para fins de desapropriação sem, contudo, apresentar a adequação do orçamento para tanto.
Apesar disso, o art. 16 da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar no. 101/2000), em seus parágrafos e incisos, de forma expressa, determina como condição prévia para a desapropriação de imóveis urbanos constante do art. 182 da Constituição Federal, sejam as ações governamentais que acarretem aumento de despesas acompanhados de: “estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subsequentes; declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias”.
E, na compreensão da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça[12] essa análise antecipada das repercussões dos atos expropriatórios sobre as finanças públicas vai ao encontro dos deveres de responsabilidade e de planejamento da gestão fiscal, previstos no parágrafo 1o, do art. 1o, da Lei Complementar no. 101/2000[13]. Senão vejamos:
“(...) buscando equacionar o descompasso entre a normatividade constitucional e a realidade empírica, o art. 16, caput, I e II, e § 4º, II, da Lei de Responsabilidade Fiscal passou a condicionar a validade das desapropriações de imóveis urbanos à prévia estimativa do impacto orçamentário-financeiro, bem como à declaração de compatibilidade das despesas necessárias ao pagamento das indenizações ao disposto no plano plurianual, na lei de diretrizes orçamentárias e na lei orçamentária anual.
Tal regramento, além de estabelecer requisitos essenciais à regularidade das expropriações, tem por escopo, sob o prisma da responsabilidade na gestão fiscal, garantir a cobertura das despesas a serem suportadas pelos municípios mediante comprovação da existência de créditos suficientes ao custeio das indenizações, além de atribuir responsabilidades aos ordenadores de despesas caso apurada a incompatibilidade entre os gastos decorrentes da expansão da ação governamental e as leis orçamentárias.”
Ora, mas não é o próprio princípio da supremacia do interesse público que, em tese, legitima a intervenção drástica do Estado na propriedade particular? Como, então, esse mesmo interesse público poderia, ao fim e ao cabo, gerar riscos e desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas?
É sob essa perspectiva que o Superior Tribunal de Justiça entendeu, recentemente, que o descumprimento desse requisito formal nas petições iniciais de ações expropriatórias, em desrespeito a referida exigência fixada no art. 16, caput e § 4o, inc. II da Lei de Responsabilidade Fiscal, é capaz de invalidar o ato de desapropriação e, ainda, de caracterizar irregularidade da despesa destinada à indenização.
CONCLUSÃO
Diante do exposto, verifica-se que a jurisprudência vem avançando no tema, com decisões de relevância prática na seara da desapropriação, e quebrando, ainda que de forma paulatina, com a antiga visão clássica de que o “Estado tudo pode”, por representar o interesse público.
Nesse diapasão, vem sendo dado ao particulares ferramentas que possibilitam não ficar totalmente à mercê de decisões discricionárias dos entes públicos e administração indireta. Tal avanço representa não só um ganho privado, no que toca à esfera do proprietário expropriado, mas também e, principalmente, uma garantia de toda a coletividade de não ver seu direito fundamental à propriedade perdido sem justificativas plausíveis.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, ed. Malheiros, 32a edição, 2014.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, ed. Saraiva, 31a edição, 2017.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, ed. Gen, 30a edição, 2017.
BEZNOS, Clovis. Aspectos Jurídicos da Indenização na Desapropriação, ed. Forum, 2007.
BRASIL. Constituição Federal, 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em 23/06/2023.
BRASIL. Código Civil, 2002. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em 22/06/2023.
BRASIL. Decreto-Lei 3.365, 1941. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em 22/06/2018.
BRASIL. Lei 10.257, 2001. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em 22/06/2023.
Site do Superior Tribunal de Justiça: http://www.stj.jus.br/SCON/
Site do Supremo Tribunal de Justiça: http://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/
[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, ed. Saraiva, 31a edição, 2017, pg. 878
[2] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, ed. Malheiros, 32a edição, 2014, pg. 889
[3] art. 5o, inc. XXIV, CF/88 - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;
[4] Aspectos Jurídicos da Indenização na Desapropriação, Belo Horizonte, Forum, 2007, p. 115.
[5] Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.
[6] RE 635336, STF
[7] Art. 15. Se o expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada de conformidade com o art. 685 do Código de Processo Civil, o juiz mandará imiti-lo provisoriamente na posse dos bens.
[8] Art. 35. Os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer ação, julgada procedente, resolver-se-á em perdas e danos.
[9]Art. 9o Ao Poder Judiciário é vedado, no processo de desapropriação, decidir se se verificam ou não os casos de utilidade pública.
Art. 20. A contestação só poderá versar sobre vício do processo judicial ou impugnação do preço; qualquer outra questão deverá ser decidida por ação direta.
[10] Art. 519. Se a coisa expropriada para fins de necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, não tiver o destino para que se desapropriou, ou não for utilizada em obras ou serviços públicos, caberá ao expropriado direito de preferência, pelo preço atual da coisa.
[11] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, ed. Saraiva, 31a edição, 2017, pg. 947
[12] RESP 1930735-TO, REL. Min. Regina Helena Costa, julgdo em 20/2/2023.
[13] Art. 1º (...)
§ 1º A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.
Pós-graduada em Direito e Advocacia Pública pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Graduada no curso de Direito pela Universidade Federal Fluminense – UFF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEITE, Sophia de Moura. Intervenção Supressiva do Estado na Propriedade: Desapropriação e Institutos Relacionados à Luz da Jurisprudência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 out 2023, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /63494/interveno-supressiva-do-estado-na-propriedade-desapropriao-e-institutos-relacionados-luz-da-jurisprudncia. Acesso em: 29 dez 2024.
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
Por: BRUNO SERAFIM DE SOUZA
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